
Sabe aquelas 'pancadas' que você toma quando toma conhecimento da existência palpável - e audível - de certas obras-primas. Pois bem: estávamos indo pra Bahia, mais exatamente para Santo Amaro da Purificação, eu e Samuel de Abreu, no intuito de tentar conhecer Roberto Mendes, mago do violão. No meio da viagem, Samuca saca um CD do Lenine, põe pra tocar uma canção que eu ignaramente ainda não conhecia. E lá vou eu tomando aquela 'porrada' com a melodia, os versos e a interpretação ímpar do pernambucano arretado que só. Era "Todas Elas Juntas Num Só Ser", uma daquelas canções definitivas que nascem de cem em cem. Antes de chegarmos ao nosso destino, ainda mais uma pancadinha de leve: batemos o carro e saímos ilesos de um acidente considerado grave pelo guarda-rodoviário que já estava no local atendendo outra ocorrência grave (estradas brasileiras, aff!) e presenciou, incrédulo, toda a cinematográfica cena de dois caminhões sendo amassados por um valente Fiat Uno, que trazia a bordo dois dublês de compositores metidos a conquistar Roberto Mendes, o mago do violão. Obstinados, prosseguimos a viagem de ônibus e obtivemos a recompensa maior: o grande compositor baiano foi com a nossa alma e se fez nosso amigo num encontro que mais pareceu o reencontro de velhos conhecidos que se reviam depois de tempos. Tudo devidamente ciceroneado pelo guia cultural Robério, o Grego. E eu ainda fiquei no lucro maior (apesar das perdas e, danem-se os danos materiais...), por trazer na algibeira, além da amizade à primeira vista do mago do violão Roberto Caribé Mendes, esta canção que, se eu tivesse, daria mais mil veículos 1000, pra durarem exatos dois mil quilômetros, mas trazendo na bagagem de minha memória das águas "Todas Elas Juntas Num Só Ser". Não canto mais Babete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Nem Ana nem Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;
Nem a tigreza nem a vera gata
Nem a branquinha, de Caetano;
Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science,
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia do Los Hermanos.
Só você,
Hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero, por querer.
Não canto de Melô pérola negra;
De Brown e Hebert, uma brasileira;
De Ari, nem a baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem minha faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
Divina garota de Ipanema,
Nem Iracema, de Adoniran.
De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato,
E de Layla, de Clapton, eu abdico.
Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.
Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-me-belle, do beattle Paul;
Nem Isabel - Bebel - de João Gilberto;
E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na malafemmená;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a mulata mulatinha de Lalá;
E nem a carioca de Vinícius
E nem a tropicana de Alceu
E nem a escurinha de Geraldo
E nem a pastorinha de Noel
E nem a namorada de Carlinhos
E nem a superstar do Tremendão
E nem a malaguenha de Lecuona
E nem a popozuda do Tigrão.
Só você,
Hoje elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.
De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia,
Nenhuma tem meus vivas! E meus salves!
E nem Angie, do stone Mick Jagger;
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a mina do mamona Dinho
E nem as mina – pá! - do mano Xiz!
Loira de Hervê e loira do É O Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha,
Laura de Daniel, o trovador;
Ana do Rei e Ana de Djavan,
Ana do outro rei, o do baião
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.
Só você,
Rainha aqui é só você,
Só você,
A musa dentre as musas de A a Z.
Se um dia me surgisse uma moça
Dessas que com seus dotes e seus dons,
Inspira parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madallene, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho;
Ou Mabellene e a sixteen de Chuck Berry,
E a manequim do tímido Paulinho;
Ou como, de Caymmi, a moça prosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse uma moça dessas.
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida;
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas... mas não mais que três...
Só você...
Mais que tudo é só você;
Só você...
As coisas mais queridas você é:
Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Steve Wonder, ó minha parceira.
Você é pra mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a cigana pra Ronaldo bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna pra Ventadorn, Bernart;
Que a honey baby pra Waly Salomão
E a funny valentine pra Lorenz Hart.
Só você,
Mais que tudo e todas, é só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.
(Lenine/Carlos Rennó)