segunda-feira, 29 de março de 2010

INSTRUMENTO DO MEU CANTO

Lá pelos idos anos 1980, pouco mais da metade dessa década, creio eu, 1986 pra tentar ser exato, caso não me traia minha aflita memória, assisti a um show do cantor e compositor pernambucano Geraldo Azevedo, este acompanhado apenasmente de seu violão, e saí do Garfo Clube, na Ilha, local daquela apresentação de gala, como quem tivesse ido a um banquete de arte, tamanha era minha indômita fome de vomitar versos. E, em casa, como quem cumpre uma necessidade fisiológica, despejei-me no raso prato do papel em branco, borrado à tinta e fingimento:

Meu instrumento é a melhor ferramenta,
Som que ele produz conduz meu pensamento
Por intensa caminhada calma e violenta:
Aonde a canção alcança o sacramento.

Meu instrumento é a melhor vestimenta,
Com ele me sinto (lindo!) invadindo o infinito.
Todo o Universo o sol bemol contenta
Quando acorda os acordes mansos do grito.

Meu instrumento é o que me alimenta,
Com ele transformo fome e fúria em canto.
Preparo em paz a melodia que sustenta
O corpo e dá à alma sopro e acalanto.

Meu instrumento é o que me inventa,
Com ele te descubro ò Deus do meu talento,
Certeza que só o coração experimenta:
__ Música é o altar do sentimento!

(Pedro Ramúcio)

quinta-feira, 25 de março de 2010

"TODAS ELAS JUNTAS NUM SÓ SER"


Sabe aquelas 'pancadas' que você toma quando toma conhecimento da existência palpável - e audível - de certas obras-primas. Pois bem: estávamos indo pra Bahia, mais exatamente para Santo Amaro da Purificação, eu e Samuel de Abreu, no intuito de tentar conhecer Roberto Mendes, mago do violão. No meio da viagem, Samuca saca um CD do Lenine, põe pra tocar uma canção que eu ignaramente ainda não conhecia. E lá vou eu tomando aquela 'porrada' com a melodia, os versos e a interpretação ímpar do pernambucano arretado que só. Era "Todas Elas Juntas Num Só Ser", uma daquelas canções definitivas que nascem de cem em cem. Antes de chegarmos ao nosso destino, ainda mais uma pancadinha de leve: batemos o carro e saímos ilesos de um acidente considerado grave pelo guarda-rodoviário que já estava no local atendendo outra ocorrência grave (estradas brasileiras, aff!) e presenciou, incrédulo, toda a cinematográfica cena de dois caminhões sendo amassados por um valente Fiat Uno, que trazia a bordo dois dublês de compositores metidos a conquistar Roberto Mendes, o mago do violão. Obstinados, prosseguimos a viagem de ônibus e obtivemos a recompensa maior: o grande compositor baiano foi com a nossa alma e se fez nosso amigo num encontro que mais pareceu o reencontro de velhos conhecidos que se reviam depois de tempos. Tudo devidamente ciceroneado pelo guia cultural Robério, o Grego. E eu ainda fiquei no lucro maior (apesar das perdas e, danem-se os danos materiais...), por trazer na algibeira, além da amizade à primeira vista do mago do violão Roberto Caribé Mendes, esta canção que, se eu tivesse, daria mais mil veículos 1000, pra durarem exatos dois mil quilômetros, mas trazendo na bagagem de minha memória das águas "Todas Elas Juntas Num Só Ser".

Não canto mais Babete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Nem Ana nem Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;
Nem a tigreza nem a vera gata
Nem a branquinha, de Caetano;
Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science,
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia do Los Hermanos.

Só você,
Hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero, por querer.

Não canto de Melô pérola negra;
De Brown e Hebert, uma brasileira;
De Ari, nem a baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem minha faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
Divina garota de Ipanema,
Nem Iracema, de Adoniran.
De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato,
E de Layla, de Clapton, eu abdico.

Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.

Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-me-belle, do beattle Paul;
Nem Isabel - Bebel - de João Gilberto;
E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na malafemmená;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a mulata mulatinha de Lalá;
E nem a carioca de Vinícius
E nem a tropicana de Alceu
E nem a escurinha de Geraldo
E nem a pastorinha de Noel
E nem a namorada de Carlinhos
E nem a superstar do Tremendão
E nem a malaguenha de Lecuona
E nem a popozuda do Tigrão.

Só você,
Hoje elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.

De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia,
Nenhuma tem meus vivas! E meus salves!
E nem Angie, do stone Mick Jagger;
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a mina do mamona Dinho
E nem as mina – pá! - do mano Xiz!
Loira de Hervê e loira do É O Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha,
Laura de Daniel, o trovador;
Ana do Rei e Ana de Djavan,
Ana do outro rei, o do baião
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.

Só você,
Rainha aqui é só você,
Só você,
A musa dentre as musas de A a Z.

Se um dia me surgisse uma moça
Dessas que com seus dotes e seus dons,
Inspira parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madallene, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho;
Ou Mabellene e a sixteen de Chuck Berry,
E a manequim do tímido Paulinho;
Ou como, de Caymmi, a moça prosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse uma moça dessas.
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida;
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas... mas não mais que três...

Só você...
Mais que tudo é só você;
Só você...
As coisas mais queridas você é:

Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Steve Wonder, ó minha parceira.
Você é pra mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a cigana pra Ronaldo bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna pra Ventadorn, Bernart;
Que a honey baby pra Waly Salomão
E a funny valentine pra Lorenz Hart.

Só você,
Mais que tudo e todas, é só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.

(Lenine/Carlos Rennó)

segunda-feira, 22 de março de 2010

"DESAFIO"

O amigo e poeta Jorge Pimenta, do Viagens de Luz e Sombra, lançou-me um desafio que trata-se de um Canto Geral dos sentidos e seus matizes.


Jorge, aceito, sim, confesso que desajeitadamente, mas lisonjeado por ser um dos selecionados, o desafio lançado a mim, e cá estou a triplicar-me em quatro:

4 lugares onde comprar:
__ Livraria Leitura: onde leio mais que compro (geralmente enquanto a musa-esposa namora utensílios de outras utilidades várias, antes de vir folhear comigo meus autores preferidos) e adquiro mais do que pago, quando levo pra casa a fortuna de um livro. Não me canso de ir ao shopping para passear entre as prateleiras que guardam volumes e mais volumes de tijolos feitos de capa e páginas.
__ Supermercado Coelho Diniz: não sei se é o melhor ou o que mais barato vende, mas está localizado mais próximo de casa e tempo também é dinheiro, especialmente para quem tem pouco dinheiro para gastar.
__ Churrasquinho do Kabeça, na Ilha: onde eu e a musa-esposa-poeta-cantora conhecemos um arroz chinês feito na chapa que virou cardápio obrigatório uma vez por semana, além de um pão com linguiça que o poeta Roberto Lima precisa conhecer quando pousar seus pés em Valadares (revisited) de novo.
Ps. o Kabeça é a 'cara' (e o corpo também: altura, óculos, barba...) do compositor baiano Roberto Mendes, que também será convidado a apreciar as especiarias de seu sósia, quando enfim cumprir a promessa de vir trazer um pedacinho de sua Santo Amaro para fazer samba e morada num palco valadarense.
__ Livraria Leitura: outra vez e sempre, sempre outras vezes.

4 cheiros:
__ cheiro de um poema recém-nascido.
__ "O Cheiro de Deus", romance de Roberto Drummond, genial já o título.
__ cheiro do cio, entre o silêncio que grita e a cachoeira que dele brota de líquidos que inundam o nariz de prazer e êxtases.
__ cheiro de loção para abafar o insuportável mau-cheiro da memória, dum verso de Carlos Drummond de Andrade.

4 coisas que me fazem sorrir:
__ o sorriso de uma criança.
__ o sorriso de minha mãe.
__ um aperto de mãos quando é dado com a alma, acusado por uma lágrima interna.
__ um gesto de boa vontade entre as pessoas, quer seja uma ajuda para atravessar a rua; uma moeda num canto difícil do bolso ou bolsa, estendida para facilitar um troco; uma gentileza no trânsito; uma qualquer atitude que desconstrua um muro mas erga uma ponte.

4 blogues a desafiar:
__ "Teatro da Vida", de Lara Amaral.
__ "Mil e Um Poemas", de Assis Freitas.
__ "Amor Feito Poesia", de Maria L. Bózoli.
__ "Afrodite para Maiores", de Luciana P.
(e todos que me visitam sempre, pra minha honraria maior)

*

"Um galo sozinho não tece manhãs."
(João Cabral de Melo Neto)

domingo, 14 de março de 2010

INVERNOUTONO























Lendo um comentário de Jorge Pimenta lá no Primeira Pessoa, sobre um poema de Ruy Belo que trata de tema que quase todos tememos, a morte - "a indesejada das gentes" -, lembrou-se-me uns versos que eu rabiscara em minha tenra adolescência, época em que versejei
bastantemente muito, tendo o assunto fúnebre consoantemente em voga.

Perdido por pertencer a ser meu,
Vive quem sou, arrependido e triste:
Por ter nascido e ainda não morreu.
Mal sabe ele por que afinal existe!

Esse sentimento nele persiste,
A cada manhã banhada de breu.
Nunca haverá um riso que o conquiste,
Crê na alegria com a fé de um ateu.

Só no mistério fia que é esta vida!
Detesta o ócio, escusa toda lida.
Rege-o um destino estranho e obscuro.

Dorme sempre com a esperança acesa,
Despertar morto sobre uma fria mesa.
_ Um sono assim também eu o procuro!

(Pedro Ramúcio)

quarta-feira, 10 de março de 2010

ALFABETANIA

Se algum dia a grande dama do 'drama em música' da Música Popular Brasileira, num lapso de sonho, me pedisse uma canção, como se eu fora um Vander Lee...

Nem precisava pedir
A canção já estava pronta
Muito antes de
O pequeno ponteiro do tempo
Dar o primeiro passo sem fim

Nem precisava sangrar
A canção já estava pronta
Muito embora há
De haver Gilberto Gil ou Gonzaguinha
Pra trazer o verso de lá

Nem precisava sonhar
A canção já estava pronta
Muito mais agora
Quando Fernando Pessoa ecoa
Das cordas mansas de Roberto Mendes

Nem precisava gemer
A canção já estava pronta
Muito mais que
A primeira manhã ao deixar
Alceu Valença tão ao seu alcance

Nem precisava erguer
A canção já estava pronta
Muito além do que
Chico Buarque de Holanda apronta
Com suas rimas primas e desenhos mágicos

Nem precisava do amor
A canção já estava pronta
Muito embora o
Poeta que é poeta jamais nega
O verso que Vinicius de Moraes imortalizou

Nem precisava compor
A canção já estava pronta
Muito além do tom
Que Milton Nascimento
Tornara impossível outra voz revisitar

Nem precisava ousar
A canção já estava pronta
Muito mais ainda
Se Caetano Veloso se nos ilumina
Com sua língua que roça a língua de Noel Rosa

Nem precisava brincar
A canção já estava pronta
Muito mais então
Depois que Guilherme Arantes
Lapidou os diamantes finos da imaginação

Nem precisava saber
A canção já estava pronta
Tomara tão simples
Quanto a modinha mais singela
Que Dorival Caymmi cantava com tanto requinte

Nem precisava sofrer
A canção já estava pronta
Muito embora haja
Djavan na antessala do amor
Mostrando pr'esse pecado o mais sagrado álibi

Nem precisava da cor
A canção já estava pronta
Matiz de todo som
Que Tom Jobim pintou
E espalhou no espelho de todos os pianos

Nem precisava da dor
A canção já estava pronta
Tanto quanto tantas
Compositoras fazem queimar suas fogueiras
E acendem o lado quente do ser

Nem precisava fingir
A canção já estava pronta
Muito antes de
O pequeno ponteiro do tempo
Dar o primeiro passo sem fim

(Pedro Ramúcio)

segunda-feira, 8 de março de 2010

"MISTÉRIOS FEMININOS"

Em novembro de 2008, na sala de espera de uma clínica de fisioterapia, deparei-me com uma entrevista de Daniela Mercury nas páginas da revista Caras, na matéria entitulada "Mistérios Femininos". Achei as respostas da cantora baiana superinspiradas e prenhes de frases musicais. Pincei algumas delas, juntamente com o título - já pronto - da matéria, cujo nome da brilhante jornalista não me recordo agora, e compilei este poema com umas frases-versos de Mercury mais alguns versos-frases deste poeta de plantão que vos fala.

Não existe coisa mais íntima do que a poesia
E melhor que a mulher ninguém escreveria
Um verso de amor, parto de pura inspiração
Sua força é capaz de abrir sem nenhum bisturi
O cofre mais bem guardado a quinhentas chaves
O coração mais frio e gelado que nunca se abre
Sorriso oculto feito o vulto de um notívago colibri

Ainda tem mulheres que não sabem todo seu poder
Casam cedo, no ano seguinte têm o segundo filho
Estão sempre em terceiro plano de emprego e marido
(A calma é a grande intérprete de sua feminina alma)
Mas sem elas eu queria ver o que seria do mundo
Os homens ficariam perdidos numa noite infinita
Os machos restariam extintos feito coisa nenhuma

As mulheres são estrelas que desceram para ser mães
Os filhos são frutos do bem e do mel dessas abelhas

(Pedro Ramúcio/Daniela Mercury)